Aqui em Bonnevaux – no Hemisfério Norte – o Advento começa no Outono. O Natal chega no morto e escuro Inverno, quando o Sol, embora impercetivelmente, renasce no Solstício. A roda gira de novo. O fim do Ano Litúrgico cristão – e como todos os fins, ele é também um início – acontece quando a maioria das árvores está silenciosamente a perder a sua glória, a deixar cair a suas folhas. Elas caem uma a uma, como se fossem estrelas cadentes ou almas moribundas. A mágica palete do Outono vai-se esbatendo em silhuetas escuras de árvores nuas com o contorno desenhado contra o céu: a arte da natureza no seu estilo mais minimalista. No solo, as folhas estão por todo o lado, sopradas e espalhadas pelo vento ou decompondo-se lentamente no que resta do calor do sol. Os gatos adoram encaracolar-se nelas.
Então acontece o que há de menos contemplativo em tudo isto: Jean-Christophe chega com o seu soprador mecânico de folhas. Fazendo um horrendo barulho (mas poupando imenso tempo e esforço), sopra-as em padrões geométricos sobre a erva, de modo a poder juntá-las mais facilmente para as deitar fora. Pensei nisto quando li a primeira leitura da missa de hoje:
Todos nós murchámos como folhas
e os nossos pecados sopraram-nos para longe como o vento.
A leitura de Isaías pode soar excessivamente negativa a um ouvido não treinado, cheia de corações transviados e endurecidos, de ira divina, de rebelião e sujidade. Porém, não lemos a Escritura meramente para sermos consolados, mas para permitir que a lâmina da Palavra de Deus abra um sulco por entre os nossos jogos mentais e arrogância. E para nos fazer um diagnóstico. A Palavra de Deus lê-nos mesmo que pensemos, no nosso orgulho, que somos só nós que estamos a ler. Se conseguirmos sentir isto, lendo porque somos lidos, conhecendo porque somos conhecidos, que alívio! Faz-nos sentir melhor simplesmente receber um diagnóstico correto, em que possamos confiar e que dê sentido a todos os sintomas que estamos a sentir.
Se conseguirmos sentir profundamente esta interação com a Palavra, iremos lê-la com melhor entendimento e seremos mais iluminados por ela. É também mais fácil interpretá-la – por exemplo, ver a “ira de Deus” simbolicamente. Deus não pode estar “irado”. Mas o karma, as consequências inevitáveis das nossas próprias más ações podem realmente parecer-se com a ira de alguém dirigida pessoalmente contra nós. A crise ecológica, por exemplo, é o resultado do pecado coletivo – “castigo” impessoal pela ganância e pela dessacralização da natureza.
Ler a Escritura desta maneira, por vezes significa que temos que inverter os papéis descritos no texto: por exemplo, Isaías diz a Deus: “Tu escondeste a Tua face de nós e deixaste-nos à mercê do poder dos nossos pecados”. Isto quer dizer que nós escondemos a nossa face de Deus. Ao ver isto, a doce misericórdia da Palavra dá-nos um bálsamo: “nós o barro, Tu o oleiro, somos todos obra das Tuas mãos.” Será que consegue sentir a sensação de estar a ser restaurado à normalidade com estas palavras?
O evangelho para hoje, no início do Advento, reforça isto com grande economia. Traz duas mensagens para nos guiar na entrada para esta boa época da preparação do festival da Encarnação: 1. “não sabeis” e 2. “ficai despertos”. Ficar desperto numa condição de não saber. É assim que nos preparamos para reconhecer e receber o que vem na nossa direção à velocidade da luz. Esta velocidade significa que o que vem na nossa direção já aqui está.
Laurence Freeman OSB
Bonnevaux, 29 de Novembro de 2020
Texto original, em inglês: aqui
https://laurencefreeman.me/2020/11/29/first-week-of-advent-2020/
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