Os oceanos de Deus: Última Carta de John Main
![]() Na época do Natal ficamos mais agudamente cientes da misteriosa mistura do vulgar e do sublime na vida monástica e, de fato, em toda a vida que é realmente cristã. É importante, contudo, ver isto como uma mistura, não como uma oposição. É tentador tratar o nascimento de Cristo como algo romanticamente exterior ao pleno significado da sua vida, algo pré-cristão. Nas ricas e bonitas narrativas do seu nascimento, nos Evangelhos, nós podemos ser tentados a ver esta parte da sua vida como meramente consoladora ou idílica. Mas, é parte do mistério humano que nada esteja fora do Mistério. Pela Encarnação Deus aceitou este aspeto da condição humana, e assim o nascimento e a infância de Cristo são parte do mistério da sua vida - uma vida que culminou na cruz e atingiu a sua completude transcendente na Ressurreição e Ascensão. A nossa meditação ensina-nos o quão plenamente cada parte de nós tem de estar envolvida na conversão radical da nossa vida. Ela ensina-nos que temos que colocar todo o nosso coração neste trabalho do Espírito, se queremos, genuinamente, responder ao chamamento para deixar as águas superficiais e entrar na profundidade, no conhecimento direto que marca uma vida vivida no mistério de Deus. Então, tudo na nossa vida adquire esta dimensão de profundidade da divina Presença. Seremos tolos se procurarmos 'sinais' no caminho - é uma forma de materialismo espiritual que Jesus repreendeu – porque, se nós estamos no caminho, o que significa no Mistério, na nuvem luminosa da presença de Deus, então, todas as coisas são sinais. Tudo transmite o amor de Deus. Há, claro, arte literária nas narrativas da infância, de Mateus e de Lucas. Mas isto não significa que os detalhes do nascimento de Cristo não estivessem carregados de maravilha e mistério para aqueles que estiveram envolvidos nele. Os pais de Jesus 'maravilharam-se' com o que estava a ser dito sobre ele. E Maria ensina-nos como é que esta experiência de maravilhamento deve ser assimilada ao 'guardar como um tesouro, estas coisas, em seu coração'. O 'coração' é esse ponto focal do nosso ser onde podemos simplesmente ficar no Mistério, sem o tentar explicar ou dissecar. Um mistério analisado torna-se meramente mais um problema. Ele deve ser apreendido completo e íntegro. E é por isso que nós, que somos chamados a apreendê-lo, nos devemos deixar unificar, coração e mente. O mistério em torno de Jesus era percetível desde o início da sua vida. Até à sua morte e ressurreição não foi possível que fosse totalmente apreendido, totalmente conhecido. Porque só então é que ficou completo. A nossa vida não alcança a plena unidade até que se transcenda a si mesma e todas as limitações, passando através da morte. É por isso que não compreendemos plenamente o mistério de Cristo, no qual entramos no mistério de Deus, até que a nossa vida esteja completa. Começamos a entrar nele, assim que a nossa consciência começa a penetrar na perceção vital e a apreender as leis da realidade, aprendendo a amar e a ser amado. Mas estamos sempre a aprender, sempre a prepararmo-nos para a plenitude que vem para todos nós. Até que a vida de Jesus tivesse atravessado a morte e retornado na Ressurreição, esta conclusão foi uma fonte de terror ou desespero para a raça humana. Agora ela se transformou. Porque aquilo que parecia um beco sem saída foi agora revelado aos olhos da fé como uma ponte. Este é o significado oculto do nascimento de Jesus, seu crescimento através da infância e idade adulta e seu supremo sacrifício de si mesmo na Cruz. No nosso princípio está o nosso fim. E assim no nascimento de Jesus a morte já começou a ser transformada. Todas as intuições partilhadas por aqueles que estiveram envolvidos no seu nascimento e nos primeiros tempos de sua vida foram cumpridas no seu ministério e no mistério Pascal. Sua vida, como cada vida humana, tem uma unidade oculta e misteriosa. Final e início são duas extremidades do fio da vida sustido no mistério de Deus, e juntaram-se no mistério de Cristo. A nossa vida é uma unidade porque ela é centrada no mistério de Deus. Mas, para conhecer a sua unidade, temos de ver para além de nós mesmos e com uma perspetiva maior do que aquela com que geralmente vemos, quando o autointeresse é a nossa preocupação dominante. Só quando nos tivermos começado a desviar do autointeresse e da autoconsciência, é que esta perspetiva maior se começa a abrir. Outra maneira de dizer que a nossa visão se expande é dizer que chegamos a ver para além das meras aparências, para dentro da profundidade e do significado das coisas. Não são apenas a profundidade e significação em relação nós mesmos que estão envolvidas, mas, a profundidade em relação ao todo do qual somos parte. Este é o caminho do verdadeiro autoconhecimento e é por isto que o verdadeiro autoconhecimento é idêntico a verdadeira humildade. A meditação abre nos a esta preciosa forma de conhecimento, e é o que nos permite ultrapassar a mera objetividade - meramente olhar para o mistério de Deus como observadores - e entrar no mistério em si. Este conhecimento torna-se sabedoria, uma vez que entremos na nuvem do mistério, e quando soubermos, já não pela análise e definição, mas pela participação na vida e espírito de Cristo. Assim aprendemos pelo caminho da meditação, o que não pode ser aprendido de outra maneira, o que é incognoscível enquanto hesitarmos em nos tornarmos verdadeiros peregrinos do espírito. Seguir este caminho é uma exigência fundamental da vida cristã que deve ser uma vida vivida desde a profundidade, ao invés da superficialidade, nas águas rasas. É por isso que o discipulado cristão é o que completa a condição humana. Nesta condição o homem busca sempre a ação completa, algo que irá convocar todos os seus poderes em simultâneo, focalizar e unificar todas as dimensões do seu ser. Até que encontremos esta ação, permanecemos inquietos, sempre dominados pela distração ou desejo mascarado de realidade, à qual só esta ação perfeita nos pode levar. Naturalmente, se somos verdadeiramente humanos, sabemos que esta ação é o amor. Somente quando nós vivemos no amor e a partir do amor conhecemos essa milagrosa harmonia e integração de todo o nosso ser que nos torna plenamente humanos. Este é sempre um estado prático, ao invés de idílico: quero dizer que a condição humana é sempre composta de fragilidades e imperfeições, tanto de personalidade como de ambiente. A Encarnação de Deus na condição humana, no entanto, absorve todas essas falhas e acidentes, de tal modo que elas já não podem privar-nos da plenitude do amor. O santo não é o super-humano mas o plenamente humano. Cada parte de nós, incluindo os nossos defeitos e falhas, deve ser incluída no nosso compromisso com a peregrinação para esta plenitude. Nada que seja real é excluído do Reino dos Céus. Uma realista plenitude humana é a experiência acumulativa de permanecer na nossa peregrinação. Gradualmente os compartimentos separados da nossa vida fundem-se. As divisórias dos compartimentos são retiradas, e nós descobrimos que o nosso coração não é uma prisão composta por milhares de células individuais, mas uma grande câmara preenchida com a luz de Deus, cujas paredes estão constantemente a ser empurradas para trás. A meditação expande o nosso conhecimento de Deus, porque, ao nos conduzir ao autoconhecimento, impulsiona-nos para além da autoconsciência. Conhecemos Deus no grau e na medida em que nos esquecemos de nós mesmos. Este é o paradoxo e o risco da oração. Não é suficiente estudar o paradoxo, porque, como o amor, ele só pode ser conhecido quando é vivido em primeira mão. Uma vez que começarmos a vivê-lo podemos ler os grandes testemunhos humanos do espírito - o Novo Testamento e os clássicos espirituais – a partir de dentro da mesma experiência. Até então, no entanto, nós somos apenas observadores, na melhor das hipóteses, esperando para começar. Não é um paradoxo fácil de entender. Como pode uma pessoa entender o espírito? Mas ajuda se refletirmos sobre a manifestação humana dessa estrutura essencial da realidade. Amar outras pessoas envolve mais do que pensar nelas, mais do que desfrutar da sua companhia, mais até do que sacrificar-se a si mesmo por elas. Envolve permitirmo-nos ser amados por elas. Este é talvez o mistério mais comovente e inspirador da maior reverência da Encarnação. Ao tornar-se humano Deus permite-se ser amado dentro da escala humana de amor, tão normalmente como qualquer bebé, criança, adolescente ou adulto. A humildade de Deus em permitir-se ser amado no homem Jesus é a nossa pista para reconhecer a estrutura básica de toda a realidade. O nosso primeiro passo para amar a Deus é permitirmo-nos ser amados. A gramática da língua aqui é enganosa porque não há nada de passivo em nos deixarmos ser amados. Assim como não há nada de passivo em voltar a nossa atenção para fora de nós mesmos e nada de passivo em dizer o mantra - que são as maneiras de nos permitirmos ser amados em qualquer relacionamento humano ou divino. A meditação leva-nos para o relacionamento básico da nossa vida. Ela faz isso porque nos leva à intimidade com Deus que surge a partir da realidade eterna do seu amar-nos e conhecer-nos. Ao fazê-lo, ele nos chama a ser e ser humano é, em si, uma resposta à demanda inerente no amor e conhecimento de Deus, em relação a nós. É a demanda de que nós o amemos e conheçamos. No entanto, só o podemos conhecer, não como um objeto do nosso conhecimento, mas pela participação no seu próprio autoconhecimento, sua vida, seu espírito. Assim, somos levados de volta para o ponto de partida do nosso ser, o seu amor por nós e o seu conhecer de nós. Passamos a conhecer e a amar a Deus porque permitimos que ele nos conheça e ame. Nós permitimos que o seu autoconhecimento se torne o nosso autoconhecimento. Isto é a alquimia do amor. Conhecimento como este é certo e inabalável. 'Estar enraizado e sustentado no amor', escreveu S. Paulo. Tal como as raízes das árvores seguram o solo firmemente e impedem a erosão, assim são as raízes do amor que seguram o terreno do nosso estar juntos. Fornecem o contexto em que vivemos e crescemos. E, cada uma retorna de volta a Deus, como a primeira raiz de todos os seres. As raízes do amor na nossa vida colocam-nos em contexto com Ele, conosco mesmos e uns com os outros. E elas nos mostram que ser é estar em conexão, cada um contribuindo para o outro. Sanidade e equilíbrio significam conhecer o contexto em que vivemos. Esta forma de conhecimento torna-nos sensíveis à presença de Deus em tudo o que nos rodeia. A meditação ensina-nos da única maneira certa, pela experiência, que a presença de Deus não é exterior a nós. Ela é interior, é a presença que compõe e mantém unido o chão do nosso ser. Assim deixamos de procurar a presença de Deus nas fontes externas da nossa vida, mas a reconhecê-lo nelas, porque os nossos olhos estão abertos interiormente, ao seu Espírito que aí habita. Já não tentamos apreender Deus, possuí-lo. Em vez disso, somos apreendidos pela sua presença, interiormente e exteriormente, porque sabemos que a sua presença é difusa em tudo e o fundamento de tudo o que é. Ser possuído por Deus desta maneira é a única verdadeira liberdade. A tirania do amor é o único verdadeiro relacionamento. Inevitavelmente, tememos isto assim que se desenvolve ou emerge durante a nossa peregrinação, porque a nossa imagem de liberdade é tão diferente, tão ingenuamente imaginada como a liberdade de ‘fazer’ ao invés de ‘ser’. Mas se tivermos a coragem de ser simples e humildes o bastante para entrar nessa verdadeira liberdade, então descobrimos em nós mesmos o poder de uma fé que é inabalável. A confiança cristã é a descoberta desta ‘inabalabilidade’ e é esta confiança que subjaz à compaixão, à tolerância e à aceitação cristãs. Tornamo-nos maravilhosamente seguros na nossa própria existência por esta descoberta, e a partir dessa segurança somos capacitados para deixar cair as nossas defesas e para ir ao encontro do outro. A nossa fé é inabalável, não rígida, porque é ‘uma’ com o chão do nosso ser. Através da união de Cristo com os seus discípulos, a sua fé torna-se a fé deles e a fé deles não é um complemento para o seu ser. É a respiração da sua vida no espírito. Assim, aprofundar o nosso compromisso com esta peregrinação significa aprofundar o conhecimento que a fé faz nascer na alma. À medida que Cristo é formado em nós, porque já não vivemos para nós mesmos, mas para ele, e o seu espírito sopra a vida nova da fé nos nossos corpos mortais, passamos a conhecer mais profundamente a Cristo. Talvez pareça arrogante dizer que passamos a conhecer a Cristo por perseverarmos na meditação. Mas a verdade não é menos do que isso. Passamos a saber o que é viver cada momento, cada decisão, alegria ou dificuldade, a partir de dentro da sua presença e, portanto, a partir dos recursos infinitos do seu poder - o poder do amor e da compaixão, uma realidade inabalável. Como é que nós entramos nesta presença? Como é que nós podemos adquirir este ‘conhecimento que está para além do conhecimento’? Porque é o conhecimento do desconhecer, é a presença que se forma quando nos deixamos ir para além do estarmos presentes apenas para nós, e em vez disso, tornamo-nos presentes para Deus - ser conhecido e amado em plenitude de ser por ele. Enquanto somos des-formados, ele é formado. Temos que aprender a nos esquecermos de nós próprios. Nada é mais simples de fazer. É a condição da total simplicidade. Ainda que nada - ou assim parece - seja mais difícil para nós. É tão fácil em teoria aceitar isto. Mas, na prática, é tão difícil viver e amar como se o outro fosse realmente mais importante do que nós mesmos, ou como se a nossa primeira lealdade fosse realmente não para connosco, mas para com o outro. A maior dificuldade está em começar, em dar o primeiro passo, para lançar-se para dentro da profundidade da realidade de Deus tal como revelada em Cristo. Uma vez abandonadas as margens do nosso próprio eu, apanhamos, rapidamente, as correntes da realidade que nos dão a nossa direção e impulso. Quanto mais quietos e atentos estivermos, mais sensitivamente respondemos a estas correntes. E então, mais absoluta e verdadeiramente espiritual se torna a nossa fé. Pela quietude no espírito, avançamos no oceano de Deus. Se tivermos a coragem de empurrar o nosso barco e de o afastar da margem não falharemos a descoberta desta direção e energia. Quanto mais para o mar alto viajarmos, mais forte a corrente se torna e mais profunda a nossa fé. Por algum tempo, a profundidade da nossa fé é desafiada pelo paradoxo de que o horizonte do nosso destino é cada vez mais longínquo. Para aonde vamos com esta fé mais profunda? Então, gradualmente reconhecemos o significado da corrente que nos guia e vemos que o oceano é infinito. Abandonar as margens é o primeiro grande desafio, mas, é o bastante começar a enfrentar o desafio. Mesmo que os desafios se possam tornar maiores mais tarde, temos a certeza de que receberemos tudo o que precisamos para enfrentá-los. Começamos por dizer o mantra. Dizer o mantra é sempre estar a começar, estar sempre a retornar ao primeiro passo. Aprendemos, a seu tempo, que há apenas um passo entre nós e Deus. Abrir os nossos corações ao espírito de Cristo é o único caminho para termos a certeza de que esse passo foi dado. Cristo assumiu-o ele mesmo. Ele próprio é o passo entre Deus e homem, porque ele é Deus e homem. A linguagem que usamos para expressar este mistério, o maior e fundamental mistério da raça humana e de todos os tempos, é pateticamente inadequada - como mostraram as controvérsias teológicas através dos séculos. Nenhuma linguagem ou conceito ou metáfora pode expressar o mistério de Cristo, porque Cristo é a plena corporização de Deus e não pode haver nenhuma expressão adequada de Deus exceto a sua autoexpressão. A única maneira de conhecer a Cristo é entrar no seu mistério pessoal, deixando ideias e palavras para trás. Deixamo-las para trás a fim de entrar no silêncio do pleno conhecimento e amor, para o qual a meditação vai conduzindo cada um de nós. Texto original: The Oceans of God: John Main’s Last Letter |