Quarta-feira da 4ª Semana da Quaresma
Mais sobre os estranhos.
Acabei de ver a adaptação em seis episódios da BBC de “Guerra e Paz”, um romance com 1200 páginas. Senti-me como se estivesse a encontrar velhos amigos que eram, ao mesmo tempo (sendo personagens de ficção), estranhos. Foi bom encontrá-los outra vez, mesmo que a maneira como eram descritos e retratados no filme fosse mais superficial e abreviada do que se os tivesse encontrado e conhecido através da leitura do livro. Como acontece a muitas outras pessoas, parecia-me conhecer melhor os personagens do que a sua versão televisiva, mas fiquei satisfeito por os ver representados de novo. A diferença entre os estranhos e os amigos é que, com um amigo, voltamos a encontrá-lo, seguros de alguma coisa a seu respeito, mas não é possível o aborrecimento porque, numa profunda familiaridade, sempre surgirão novos ângulos. Então, os personagens de “Guerra e Paz” – que eu conheço e que sempre gosto de voltar a encontrar – são amigos ou estranhos?
Tolstoy dizia que o seu livro não era um romance, muito menos um poema ou História. Ele defendia que o verdadeiro herói do livro é a “verdade” e que era simplesmente o que ele, como autor, “queria e era capaz de expressar na forma em que estava expresso”. Isto explica porque é que se trata dum romance tão bom (ou não-romance). Está malcuidado e, muitas vezes, mal escrito. Não tem um grande enredo. É repetitivo e o autor sobredimensiona a sua própria teoria da História, em certa medida, no meio dele. É, por outras palavras, como acontece na vida real, não uma fantasia, mas uma emanação da experiência real.
Os personagens de ficção são apena isso – emanações ou avatares. Um bom filme, uma boa telenovela ou as séries da Netflix viciam as pessoas com o enredo que, habitualmente, fica dependente duma taxa crescente de momentos de suspense. Os melhores têm personagens interessantes, que mostram capacidade de mudar com o curso da história. Mas é muito raro um escritor – Toltoy é um deles – que imagina personagens que têm a sua própria vida real, confusa e contraditória. Shakespeare roubava os enredos de outros escritores e investia também os seus dons na criação de seres humanos de quem nos podemos sentir mais próximos do que das pessoas reais da nossa vida.
Não admira que Platão não quisesse poetas na sua sociedade ideal. Eles desafiam os limites entre a imaginação e a realidade e despertam sentimentos que deviam fazer parte da vida real, mas, muitas vezes, parecem incapazes de por lá terem sucesso. É mais fácil amar Natacha do que a nossa parceira? Quem sabe se esta não será a forma como, um dia, iremos entender muitos dos nossos relacionamentos humanos, aqueles que não desabrocharam em amor, os estranhos com quem não encontrámos a troca de bondade? Talvez venhamos a ver que só os conhecemos como personagens na nossa própria imaginação, em vez de pessoas reais que se tornaram uma parte desregrada de toda a nossa vida.
A moderna cultura ocidental perdeu a sua identidade cristã: talvez porque perdeu a arte de ler as Escrituras. Esqueceu a maneira de ver os personagens luminosos que lá encontramos como descrições imaginativas de pessoas reais que estão presentes na vida, não apenas no passado ou na imaginação do escritor. Por essa razão é que o Novo Testamento se lê mais depressa que a “Guerra e Paz”.
Com amor,
Laurence
Comunidade Mundial para a Meditação Cristã - Portugal
http://www.meditacaocrista.com/
https://www.facebook.com/meditacaocristaportugal
Mais sobre os estranhos.
Acabei de ver a adaptação em seis episódios da BBC de “Guerra e Paz”, um romance com 1200 páginas. Senti-me como se estivesse a encontrar velhos amigos que eram, ao mesmo tempo (sendo personagens de ficção), estranhos. Foi bom encontrá-los outra vez, mesmo que a maneira como eram descritos e retratados no filme fosse mais superficial e abreviada do que se os tivesse encontrado e conhecido através da leitura do livro. Como acontece a muitas outras pessoas, parecia-me conhecer melhor os personagens do que a sua versão televisiva, mas fiquei satisfeito por os ver representados de novo. A diferença entre os estranhos e os amigos é que, com um amigo, voltamos a encontrá-lo, seguros de alguma coisa a seu respeito, mas não é possível o aborrecimento porque, numa profunda familiaridade, sempre surgirão novos ângulos. Então, os personagens de “Guerra e Paz” – que eu conheço e que sempre gosto de voltar a encontrar – são amigos ou estranhos?
Tolstoy dizia que o seu livro não era um romance, muito menos um poema ou História. Ele defendia que o verdadeiro herói do livro é a “verdade” e que era simplesmente o que ele, como autor, “queria e era capaz de expressar na forma em que estava expresso”. Isto explica porque é que se trata dum romance tão bom (ou não-romance). Está malcuidado e, muitas vezes, mal escrito. Não tem um grande enredo. É repetitivo e o autor sobredimensiona a sua própria teoria da História, em certa medida, no meio dele. É, por outras palavras, como acontece na vida real, não uma fantasia, mas uma emanação da experiência real.
Os personagens de ficção são apena isso – emanações ou avatares. Um bom filme, uma boa telenovela ou as séries da Netflix viciam as pessoas com o enredo que, habitualmente, fica dependente duma taxa crescente de momentos de suspense. Os melhores têm personagens interessantes, que mostram capacidade de mudar com o curso da história. Mas é muito raro um escritor – Toltoy é um deles – que imagina personagens que têm a sua própria vida real, confusa e contraditória. Shakespeare roubava os enredos de outros escritores e investia também os seus dons na criação de seres humanos de quem nos podemos sentir mais próximos do que das pessoas reais da nossa vida.
Não admira que Platão não quisesse poetas na sua sociedade ideal. Eles desafiam os limites entre a imaginação e a realidade e despertam sentimentos que deviam fazer parte da vida real, mas, muitas vezes, parecem incapazes de por lá terem sucesso. É mais fácil amar Natacha do que a nossa parceira? Quem sabe se esta não será a forma como, um dia, iremos entender muitos dos nossos relacionamentos humanos, aqueles que não desabrocharam em amor, os estranhos com quem não encontrámos a troca de bondade? Talvez venhamos a ver que só os conhecemos como personagens na nossa própria imaginação, em vez de pessoas reais que se tornaram uma parte desregrada de toda a nossa vida.
A moderna cultura ocidental perdeu a sua identidade cristã: talvez porque perdeu a arte de ler as Escrituras. Esqueceu a maneira de ver os personagens luminosos que lá encontramos como descrições imaginativas de pessoas reais que estão presentes na vida, não apenas no passado ou na imaginação do escritor. Por essa razão é que o Novo Testamento se lê mais depressa que a “Guerra e Paz”.
Com amor,
Laurence
Comunidade Mundial para a Meditação Cristã - Portugal
http://www.meditacaocrista.com/
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