
Sábado após as Cinzas
A fome de poder, em qualquer das suas múltiplas formas – doméstica, sexual ou política – é talvez o desejo humano mais profundo. Se nos sentimos tantas vezes insatisfeitos e inquietos, isso é porque esta fome conflitua tão directamente com a nossa fome de amor. O poder tal como o imaginamos – posse, domínios e controlo – é irreconciliável com o amor. O conflito entre eles é a causa de muito do sofrimento interior humano.
O amor é o poder real. Tudo o resto acaba por ser denunciado como uma espécie de substituto. O amor pode faltar na nossa vida ou a nossa capacidade para amar pode estar cronicamente danificada. Quando é este o caso, procuramos alternativas, falsos deuses para adorar no lugar de pessoas para amar; cargos, possessões ou projectos. Não há dúvida de que muitas grandes obras de arte e feitos políticos resultaram desta transferência do amor para o poder, nascida do desejo humano profundo insatisfeito. Estes poderão ter, incidentalmente, proporcionado grande alegria e muitos benefícios a outros. Mas, de igual modo, esta disfunção na alma humana tem causado incomensurável disrupção social e desencadeia, muitas vezes, enormes regressões no caminho da evolução.
O tirano solitário, em qualquer ramo da epopeia humana, pode ser implacavelmente cruel no processo de aquisição ou de manutenção no poder. Ao mesmo tempo, ele revela – especialmente, quando o poder lhe vai escapando – o pathos da solidão causada pela transferência da nossa atenção para um falso deus. Se testemunharmos os últimos momentos da queda do poder dum tirano – seja numa família ou num palco da política global – e virmos o seu poder e os seus preconceitos desmoronar-se, revelando uma criança vulnerável e negligenciada; e se então sentirmos apenas um brilho cruel ante a sua humilhação, estamos a mostrar que somos, provavelmente, tão adictos ao falso poder como ele.
A narrativa da Quaresma, que se revela na Escritura e na Liturgia, constrói a história mais intensa e transformadora que alguma vez foi contada e passada de geração em geração. Durante os três dias do mistério pascal, a falsidade do desejo de poder é arrancada. A inocência, não a tirania, é humilhada e rejeitada. Mas a vulnerabilidade extrema, como o sol que irrompe entre nuvens escuras, revela o único verdadeiro poder como sendo a divindade do amor.
A Páscoa é uma oportunidade anual espantosa para reiniciar a nossa vida sobre o eixo das verdadeiras prioridades. Ela mostra, em termos heróicos, mas simples, o significado do amor numa escala cósmica, não numa escala egoisticamente romântica. Por causa dos coelhinhos de Páscoa e dos feriados, esta oportunidade mal chega a ser reconhecida, quanto mais aproveitada.
É por isso que treinamos, na Quaresma, para a maratona de três dias do Tríduo. O que estamos a fazer ou a não fazer, durante este treino, aquilo que assumimos ou que pomos de lado, tem um significado para além de si mesmo.
Com amor,
Laurence
Comunidade Mundial para a Meditação Cristã - Portugal
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