
Sábado da Quarta Semana da Quaresma - Reflexões para a Quaresma 2018
Uma vez, visitei no hospital um homem que tinha pegado numa faca ameaçando a sua mulher e o seu filho quando ela lhe disse que o ia deixar. Num estado enlouquecido ele virou faca para si próprio e feriu-se. Quando o vi ele estava mais calmo mas num imenso sofrimento interior e totalmente sem percepção sobre razões que o levaram a este seu triste e lamentável estado.
Contou-me que fora completamente surpreendido e que não estava preparado para o que a sua mulher lhe tinha dito. Ele insistia que durante todo o casamento deles tinham permanecido tão apaixonados como no início do seu relacionamento. E, afirmava ele, nunca tinham sequer uma vez tido um desacordo, estando sempre em sintonia e devotados um ao outro.
A percepção pode ser uma coisa terrível quando é falsa e quando alguma coisa que a desafia a ela bem como à visão-do-mundo que ela sustenta é a todo o custo negada. Às vezes a negação mantém a cumplicidade num grupo ou num casamento por longos períodos. Quando se torna insustentável, algo – ou alguém, como a mulher deste pobre homem – estala. Então, as forças acumuladas do auto-engano esmagam a mente e inundam todos os nossos sentimentos como um veneno. Uma das melhores descrições disto na litertatura está no romance de Jane Austen, Emma . Este romance é uma comédia: isso quer dizer que acaba bem, com toda as personagens a casarem com a pessoa certa. Mas, como acontece em muitas comédias, o lado escuro da experiência e os grandes sofrimentos que ele acarreta têm que ser encarados primeiro.
No espaço de alguns momentos, no final da história, Emma percebe como era uma jovem tonta, arrogante e totalmente sem capacidade de percepção. “Ela estava perplexa no meio da confusão de tudo o que se tinha precipitado sobre ela nas últimas horas. Cada momento tinha trazido uma nova surpresa; e cada surpresa tinha-se tornado uma causa de humilhação para ela. Como entender aquilo tudo?! Como entender os enganos que ela tinha criado assim para si mesma e aos quais se tinha submetido?! As asneiras, a cegueira da sua própria cabeça e do seu coração! […] sentou-se a meditar silenciosamente, numa atitude fixa, por alguns minutos […] suficientes para a sintonizar com o seu coração. Uma mente como a sua, depois de aberta à suspeição, fez rápidos progressos. Ela toucou – ela admitiu – ela reconheceu toda a verdade.” (cap.47)
É impossível não se sentir compaixão por alguém quando o véu de ilusão por trás do qual se tem escondido é removido. É uma violenta surpresa e a violência é muitas vezes, como no caso do homem que mencionei, virada, de uma forma ou de outra, contra si próprio. Os amigos nunca são mais essenciais do que nestes tempos de vergonha e de profunda introspecção nos próprios erros de percepção da pessoa.
A surpresa negativa e infelicidade da des-ilusão é a imagem-espelho do que acontece quando a realidade rebenta sobre nós e somos surpreendidos pela alegria e cheios de deleite. Também isto pode ser doloroso mas num caminho de crescimento, como quando percebemos que a nossa vida foi virada de pernas para o ar e do avesso pelo amor.
A areia numa ampulheta parece (mais um erro de percepção) estar a escorrer mais depressa no fim da hora. Os nossos quarenta dias estão se esgotando. Mas seja o que for em relação a que tenhamos sido desiludidos, prepara-nos para a Páscoa e a maior surpresa de todas.
Com amor,
Laurence
Texto original, em inglês: aqui
https://laurencefreeman.me/category/lent-reflections-2018/
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