
Quarta-feira de Cinzas
(Mateus 6:1-6,16-18)
Regressei recentemente da Terra Santa. Estive com um grupo de peregrinos contemplativos vindos de muitos países, que tinham diferentes estilos de expressão da sua fé; mas estavam unificados pelo terreno comum da Terra Santa e, mais ainda, pelo terreno comum de ser que tocámos juntos através do silêncio na nossa meditação quotidiana.
Israel é um país pequeno e intenso, com tanta variedade em paisagens – desertos, colinas verdejantes, vinhedos, montanhas – como em opiniões religiosas e políticas. Tem sido um local de violenta contenda desde a alvorada da história. Senti que se os seus conflitos alguma vez fossem verdadeiramente resolvidos, a cidade sempre dividida de Jerusalém – onde o Rei David construiu o Templo, onde Jesus morreu e ressuscitou e Maomé ascendeu ao Céu – tornar-se-ia instantaneamente a Jerusalém Celeste descrita no Livro do Apocalipse. Temos a certeza de que não haverá necessidade de qualquer templo ou actividade religiosa nesse lugar transfigurado porque Deus será tudo em todos. A “paz de Jerusalém” inauguraria a paz do mundo, a transformação das espadas em relhas de arado, como imaginava Isaías que aconteceria um dia. Até então, cada um de nós escolherá trabalhar para a paz ou aumentar as divisões e a violência.
Esta é uma escolha que temos possibilidade de renovar na prática diária da Quaresma. Fazemos a escolha de sermos pacíficos, não ao nível global, mas pessoal; não através da acção exterior, mas pelo trabalho interior. Deverá, como Jesus diz, ser um trabalho modesto e “escondido” de modo a que o ego tenha menos oportunidades de se aferrar a ele. O que “fazemos para a Quaresma” constitui um sinal da sinergia entre as dimensões interior e exterior da realidade. Pessoalmente e colectivamente, nós somos um microcosmos. Tal como nós somos assim o nosso mundo será. Se formos calmos, geraremos calma. Podemos renunciar ao álcool, aos doces, ao Netflix, à fofoca, a olhar para o telemóvel antes de meditar de manhã. Podemos tornar os dois períodos diários de meditação numa parte não-negociável do nosso dia ou adicionar uma meditação extra por volta do meio-dia, ler o evangelho do dia, indicado no topo de cada uma destas reflexões diárias, ou escolher um livro como companheiro da travessia do deserto nos próximos quarenta dias - não seria mau escolhermos o livro “Sentir Deus” (no original: “Sensing God”, de Laurence Freeman, sem edição em Português - NT), que foi concebido para desenvolver a meditação nesta época da Quaresma. Perseverança e consistência operam maravilhas sobre o nosso estado mental e sobre a harmonia entre o interior e o exterior; e, porque não somos perfeitos nem somos máquinas, a perseverança inclui o começar de novo quando fracassamos.
Estas práticas quaresmais tornam-se cada vez mais fontes de paz e deleite, ao tentarmos ser fiéis a elas. Elas estão realmente entre os prazeres simples e gratuitos da vida – não são fardos nem maçadas. Por meio delas, ao longo da Quaresma, recordamos as virtudes que são, muitas vezes, menorizadas ou ridicularizadas na nossa cultura – moderação, autocontenção, repetição, respeito pelas nossas limitações. Estes são elementos da sabedoria contemplativa universal, como vemos no Tao Te Ching: “Simplicidade, paciência, compaixão são os nossos maiores tesouros. Sendo simples em actos e pensamentos, regressamos à fonte do ser. Sendo pacientes, tanto com amigos como com inimigos, ficaremos de acordo com a forma como as coisas são. Sendo compassivos connosco mesmo, reconciliaremos todos os seres no mundo.”
Renunciemos a alguma coisa e façamos alguma coisa a mais. Este é o coração do exercício saudável, chamado ascese no vocabulário espiritual. Os frutos da Quaresma não aparecerão, se tentarmos forçá-los ou apenas por pensarmos neles. Eles brotam e florescem e caem subtilmente, surpreendentemente e portanto deliciosamente. Esta é uma época maravilhosa. Espero que estas reflexões vos ajudem a desfrutá-la.
Texto original, em inglês: aqui
https://laurencefreeman.me/category/lent-reflections-2019/
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