
Quinta-feira depois das Cinzas
(Lucas 9:23-25)
No evangelho de hoje Jesus chama-nos, tal como chamou os pescadores nas margens do Mar da Galileia, a segui-Lo por meio da auto-renúncia. Ele sabiamente não nos diz como fazer isso. Cabe a cada um de nós decidir: i) vou ouvir este chamamento? ii) será que ele se aloja em mim de algum modo e não se vai embora? iii) como é que posso “perder a minha vida” de modo a poder cumpri-la? A sua pergunta de conclusão põe então todas as pessoas de todas as gerações sob foco: iv) que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, ao custo de arruinar-se a si próprio? A Quaresma consiste em ouvir estas perguntas tão atentamente que não temos que as responder: o poder da própria atenção faz a resposta surgir. É claro que pode ser uma resposta ligeiramente diferente em dias diferentes, mas isto não é porque a verdade muda, mas que cada dia é diferente e assim invoca a verdade numa diferente aparência.
Vista deste modo, a nossa vida nestes próximos quarenta dias, torna-se ela própria uma peregrinação numa terra santa. Quando eu estiva em Israel, pensei: que pequeno pedaço de terra é este, sem petróleo ou recursos naturais, e com tão imensas pretensões? Tem o local mais baixo do mundo – o Mar Morto. E durante os Seus quarenta dias no Deserto da Judeia Jesus foi arrebatado ao pináculo do Templo para ver e ser tentado por todos os reinos da terra. As três fés que tentam coexistir umas com as outras ao mesmo tempo que disputam os seus próprios conflitos internos, têm histórias e mitos que ainda conduzem a política global. Aqui os detalhes têm uma importância para a vida e para morte. Cada pedrinha e cada gota de água reclama ter significado e realmente são significativas.
Quando estamos realmente no local, tornando a terra santa porque a tocamos aqui e agora e não na nossa fantasia ou através da ideologia, algo espantoso acontece. Vemos como tudo, por muito pequeno ou insignificante que seja, está ligado a tudo o mais através de todas as dimensões da realidade. O mais pequeno e o maior respeitam-se um ao outro. Há uma hierarquia é claro – algumas coisas exigem mais a nossa atenção do que outras – mas não há jogo-de-poder, não há opressão dos pequenos e vulneráveis pelos grandes e poderosos. Esta é uma visão contemplativa da realidade e se um número suficiente de pessoas no mundo a pudessem compartilhar por um momento e ao mesmo tempo, o mundo começaria a mudar sem a necessidade de força.
Durante a Quaresma, ao tentarmos harmonizar-nos a nós mesmos – interior e exterior, mentalmente, emocionalmente e fisicamente – nós devemos tentar, dia após dia, observar o nosso papel nas estruturas de poder do mundo, no trabalho, na família e nos espaços públicos. A harmonia connosco mesmos contribui para a integridade e portanto para a paz de espírito. Mas a consequência é uma maior integridade no mundo em que vivemos e trabalhamos – política, negócios, educação, medicina, ciência ou finanças. Em todos estes sectores escutamos as palavras de Isaías avisando-nos para não deixarmos a nossa espiritualidade tornar-se autocentrada e dominada pelo ego. Se conseguirmos evitar isto (difícil nesta nossa era de materialismo espiritual e de falsas ideias de integridade), a qualidade da acção muda. Não oprimamos os nossos trabalhadores nem atinjamos os pobres com o nosso punho. Em vez disso, quebremos as grilhetas injustas e libertemos os oprimidos, partilhemos o nosso pão com os famintos e demos tecto aos pobres sem-abrigo. Construamos pontes, não muros.
Então, ele clama, irás sentir o Senhor a guiar-te e a aliviar-te nos locais desérticos. Recordemos que, para a Quaresma nós nos focamos no microcosmos em ordem a melhor compreender o cosmos. Estas coisas são verdadeiras e demonstram-se a si mesmas na experiência de terra-santa da nossa vida quotidiana. Se guardarmos algum tempo ao final de cada dia, depois da meditação, para examinarmos como foi o dia, ficaremos habitualmente surpreendidos pelo significado que emerge. É infinitamente surpreendente como a autorenúncia nos restaura para nós mesmos e para o nosso lugar na plenitude das coisas.