Sábado da Quinta Semana da Quaresma
(João 11:45-56)
Vós não sabeis nada, nem raciocinais que vos é preferível que um homem morra pelo povo, para que não pereça a nação inteira.
Em criança, fui educado na riqueza da fé católica. O seu poderoso simbolismo abriu-me novas dimensões da realidade. Eu tinha uma imagem de Deus tão madura quanto era possível naquela idade. Cada vez mais, no entanto, fui me relacionando com essa distante, elevada e sempre observadora, supostamente amorosa e no entanto terrivelmente fria construção da nossa imaginação colectiva, um pouco como um ladrão de bancos se relacionaria com uma câmara de vigilância.
“Quando era criança, falava como criança, compreendia como criança e pensava como criança: mas quando me tornei um homem, pus de parte as coisas infantis”. S. Paulo insiste que temos de crescer religiosamente e romper caminho até à realidade, não a construção, da dimensão divina. Essas palavras do evangelho de hoje vêm do Sumo Sacerdote que, com uma política crueldade sempre presente nos corredores do poder, nos dá uma chave para esta maturação do nosso entendimento acerca da história da Páscoa. Este re-contar da história está prestes a entrar em alta velocidade para aqueles de nós que estamos a seguir as liturgias.
Em criança, foi-me dada uma simples, na verdade demasiado simplificadora, explicação desta história demolidora de mitos. Dívida-redenção. O sofrimento e a morte de Jesus, o inocente cordeiro-sacrifício, foi explicado como o pagamento de uma dívida que a Humanidade tinha para com um bom e amoroso Criador. Se você perguntasse que dívida era essa, contavam-lhe a história do Paraíso e do fatal pedaço de fruta que trouxe a morte e a desgraça à condição humana. Desse modo era uma inversão da história do Pai Natal. O Pai Natal dá-nos algo sem pedir nada em troca. Deus o Pai castiga as pessoas por coisas que não fizeram e chama-lhe pecado original. Como uma dívida do cartão de crédito que você não pode liquidar, a culpa foi aumentando ficando sempre, maior e maior.
Depois de uma certa idade e de um determinado nível de reflexão isto tornou-se um insulto para a inteligência da maior parte das pessoas. Elas procuram uma explicação melhor ou vão em busca da verdade noutra direcção. Os comentários do Sumo Sacerdote ajudam. Expõem uma dinâmica universal em cada sociedade humana e em todos os relacionamentos comunitários. René Girard, o pensador francês, identifica-a como um mecanismo de bode expiatório, pelo qual, em tempos de crise, um grupo em conflito culpa os seus inimigos numa vítima inocente – que é sacrificada, traz uma paz temporária e é, muitas vezes, divinizada mais tarde. Ainda fazemos isso com os judeus, homossexuais, imigrantes, ou seja, qualquer um que seja “outro” para a maioria.
A Paixão de Cristo reflecte essa dinâmica universal, mas unicamente a partir da perspectiva da vítima. A máscara está à vista – apesar de, por ser um mecanismo tão útil, o continuamos a usar, escolhendo ser inconscientes daquilo que estamos a fazer. A Quaresma e a meditação são capazes de alterar essa escolha e de nos tornar conscientes do que estamos a fazer e de qual é a nossa verdadeira relação com o Pai. O problema não reside na natureza divina, mas na psique humana. Como é que se pode ajudar as pessoas a crescer e a assumir responsabilidades por elas próprias? Tratando-as como adultos. A história da Páscoa é para gente crescida.
No âmago da mentalidade da multidão, no entanto, os humanos agem como animais ou como crianças pequenas. Alinhamos com os fortes e desprezamos os fracos se isso nos parecer ser o mais seguro. A história que em breve estaremos recontar revela a enorme solidão da alternativa à multidão. Mostra como a experiência pessoal e o mito se fundem. Rejeição, sofrimento, morte e túmulo são provações solitárias. Há que enfrentá-las. Mas não é a história inteira, nem, felizmente, o fim da história.
Reflexões para a Quaresma 2019 - LAURENCE FREEMAN OSB
Texto original, em inglês: aqui
https://laurencefreeman.me/category/lent-reflections-2019/
Comunidade Mundial para a Meditação Cristã - Portugal
http://www.meditacaocrista.com/
https://www.facebook.com/meditacaocristaportugal
(João 11:45-56)
Vós não sabeis nada, nem raciocinais que vos é preferível que um homem morra pelo povo, para que não pereça a nação inteira.
Em criança, fui educado na riqueza da fé católica. O seu poderoso simbolismo abriu-me novas dimensões da realidade. Eu tinha uma imagem de Deus tão madura quanto era possível naquela idade. Cada vez mais, no entanto, fui me relacionando com essa distante, elevada e sempre observadora, supostamente amorosa e no entanto terrivelmente fria construção da nossa imaginação colectiva, um pouco como um ladrão de bancos se relacionaria com uma câmara de vigilância.
“Quando era criança, falava como criança, compreendia como criança e pensava como criança: mas quando me tornei um homem, pus de parte as coisas infantis”. S. Paulo insiste que temos de crescer religiosamente e romper caminho até à realidade, não a construção, da dimensão divina. Essas palavras do evangelho de hoje vêm do Sumo Sacerdote que, com uma política crueldade sempre presente nos corredores do poder, nos dá uma chave para esta maturação do nosso entendimento acerca da história da Páscoa. Este re-contar da história está prestes a entrar em alta velocidade para aqueles de nós que estamos a seguir as liturgias.
Em criança, foi-me dada uma simples, na verdade demasiado simplificadora, explicação desta história demolidora de mitos. Dívida-redenção. O sofrimento e a morte de Jesus, o inocente cordeiro-sacrifício, foi explicado como o pagamento de uma dívida que a Humanidade tinha para com um bom e amoroso Criador. Se você perguntasse que dívida era essa, contavam-lhe a história do Paraíso e do fatal pedaço de fruta que trouxe a morte e a desgraça à condição humana. Desse modo era uma inversão da história do Pai Natal. O Pai Natal dá-nos algo sem pedir nada em troca. Deus o Pai castiga as pessoas por coisas que não fizeram e chama-lhe pecado original. Como uma dívida do cartão de crédito que você não pode liquidar, a culpa foi aumentando ficando sempre, maior e maior.
Depois de uma certa idade e de um determinado nível de reflexão isto tornou-se um insulto para a inteligência da maior parte das pessoas. Elas procuram uma explicação melhor ou vão em busca da verdade noutra direcção. Os comentários do Sumo Sacerdote ajudam. Expõem uma dinâmica universal em cada sociedade humana e em todos os relacionamentos comunitários. René Girard, o pensador francês, identifica-a como um mecanismo de bode expiatório, pelo qual, em tempos de crise, um grupo em conflito culpa os seus inimigos numa vítima inocente – que é sacrificada, traz uma paz temporária e é, muitas vezes, divinizada mais tarde. Ainda fazemos isso com os judeus, homossexuais, imigrantes, ou seja, qualquer um que seja “outro” para a maioria.
A Paixão de Cristo reflecte essa dinâmica universal, mas unicamente a partir da perspectiva da vítima. A máscara está à vista – apesar de, por ser um mecanismo tão útil, o continuamos a usar, escolhendo ser inconscientes daquilo que estamos a fazer. A Quaresma e a meditação são capazes de alterar essa escolha e de nos tornar conscientes do que estamos a fazer e de qual é a nossa verdadeira relação com o Pai. O problema não reside na natureza divina, mas na psique humana. Como é que se pode ajudar as pessoas a crescer e a assumir responsabilidades por elas próprias? Tratando-as como adultos. A história da Páscoa é para gente crescida.
No âmago da mentalidade da multidão, no entanto, os humanos agem como animais ou como crianças pequenas. Alinhamos com os fortes e desprezamos os fracos se isso nos parecer ser o mais seguro. A história que em breve estaremos recontar revela a enorme solidão da alternativa à multidão. Mostra como a experiência pessoal e o mito se fundem. Rejeição, sofrimento, morte e túmulo são provações solitárias. Há que enfrentá-las. Mas não é a história inteira, nem, felizmente, o fim da história.
Reflexões para a Quaresma 2019 - LAURENCE FREEMAN OSB
Texto original, em inglês: aqui
https://laurencefreeman.me/category/lent-reflections-2019/
Comunidade Mundial para a Meditação Cristã - Portugal
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