Onde é que está a nossa memória armazenada? A resposta dum materialista é no hipocampo do cérebro para as memórias de longo prazo, e no neocórtex do cérebro para aquilo que foi o meu jantar ontem. Uma mais subtil resposta que considera a dimensão espiritual como real (não apenas como um acidente do cérebro), diria que toda a memória está armazenada no nível mais profundo da consciência. Tal como disse o budista Alan Wallace, nosso companheiro de diálogo, nos recentes diálogos inter-contemplativos, nós não pensamos que a memória do computador está armazenada no teclado. Porque é que haveríamos de pensar que o cérebro nos torna conscientes?
Uma tia minha idosa sofreu da doença de Alzheimer durante dez anos e não conseguia comunicar de todo. As filhas decidiram contar-lhe que o seu marido, pai delas, tinha morrido, embora soubessem que ela não estaria ciente nem capaz de responder. Ela continuou a balbuciar sem sentido enquanto lho contavam, mas de súbito, as lágrimas escorreram-lhe pelas bochechas. Isso pode não provar nada de cientifico sobre a memória; mas sugere algo sobre a consciência sobreviver à atrofia do cérebro, tal como tem sido demonstrado que sobrevive à morte clínica de pacientes sob cuidados médicos.
Ver alguém com quem vivemos e a quem amámos toda a vida perder a memória e afastar-se de nós é morrer em vida. Passamos por mortes em muitos níveis de intensidade ao longo duma vida, mas esta deve ser uma das piores. E no entanto, nesta também, há um substrato de consciência que nos conecta, mesmo quando todos os sinais que intercambiamos para mostrar que nos reconhecemos e nos preocupamos uns com os outros, acabaram por se apagar.
A persistência da memória profunda – e o amor é um tipo de memória continuamente relembrada e renovada – não nega a morte. De certa forma torna a morte ainda mais definitiva e terrível. Porém ela transcende a morte e mostra a vida como a grande constante. A vida é inextinguível. A consciência em si mesma é vida e a memória mostra que o amor é mais forte que a morte.
Os relacionamentos pessoais ensinam-nos isto. O mesmo fazem as grandes tradições espirituais, que são uma transmissão numa corrente de consciência duma memória viva que nos liga à nossa fonte, ao mesmo tempo que nos leva em frente na nossa jornada individual. Para todos nós, hoje em dia, as nossas jornadas individuais na vida estão conectadas pela ameaça e pelo medo do coronavírus. Para alguns de nós já significou a morte de pessoas queridas. Em todos nós despoleta a consciência da nossa mortalidade e as incertezas da mudança que não podemos controlar.
Em épocas tão negras, porém, uma memória colectiva, suprimida pela hiper-distracção, torna-se consciente de novo: a memória da vida experienciada como uma jornada espiritual que começa e termina em mistério, cheia de inexplicável dor e alegria mas cheia de maravilha. É o maravilha que, no final, nos liberta do medo. Somos expostos pela primeira vez à nossa real aflição: de não termos um caminho espiritual numa época como esta, nos faltar uma fonte de significado, não vermos a centelha de vida escondida na escuridão das nossas mortes. Todos estes são sintomas de outro vírus que cresce rapidamente no nosso materialismo e alucinação. Relembrar isto é vencer o medo da morte e de morrer.
Reflexões para a Quaresma 2020 - LAURENCE FREEMAN OSB
Texto original , em inglês: aqui
https://laurencefreeman.me/category/lent-reflections-2020/
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