Quinta-feira da Quarta Semana
A nossa crise do coronavírus vai durar para além da Quaresma. Mas ela acrescenta uma dimensão pessoal e urgente aos principais temas deste tempo espiritual. Olhámos para eles depois do começo da Quaresma mas talvez agora, eles pareçam mais existenciais e menos meramente espirituais. Ou, dizendo de outro modo, nós estamos a descobrir que o espiritual não é tão abstracto como frequentemente assumimos e que a vida, ela mesma, é uma jornada espiritual que reune todos os aspetos e tipos de experiência humana. Quando nos esquecemos disso, esquecemos um elemento central da nossa humanidade. Arriscamo-nos a nos tornarmos não só espiritualmente subnutridos, mas menos que humanos.
Fiquei chocado recentemente ao receber uma carta dirigida ao Vírus por um(a) jovem de 20 anos. Não a vou citar porque poderia ser perturbador para aqueles que perderam amigos por causa do vírus ou estão seriamente preocupados pelos seus familiares ou por eles mesmos. Era uma carta de agradecimento, escrita de uma forma inteligente e provocadora mas, como podemos esperar de uma pessoa jovem e intensa, faltando-lhe ainda assim uma plena empatia pelos que estão a sofrer. A carta dolorosamente via a crise como um chamamento para um despertar, e uma acusação formal a um estilo de vida insustentável.
Como disse há dias, este não é um tempo para meramente culpar e apontar o dedo, nem mesmo a nós próprios. Mas existe um ensinamento escondido nesta crise e, se o pudermos achar, reconheceremos a oportunidade de mudança que ela oferece. O sofrimento terrível e a taxa de mortalidade no final não serão justificados, mas serão parte desse significado difícil de engolir. Para qualquer pessoa viva hoje, seja qual for a geração a que pertença, infectado ou não, o mundo jamais será o mesmo. A família humana será mais fraca e a recuperação será difícil. Em tempos como estes, as forças obscuras da política e das finanças podem procurar tirar vantagem e nunca será mais importante do que agora ter uma massa crítica de pessoas nas quais a mente contemplativa já despertou. Não heróis nem santos mas seres humanos que recuperaram a dimensão espiritual da realidade, tantas vezes perdida, ridicularizada, negligenciada, rejeitada ou banalizada na nossa cultura de hoje.
Quando colocamos a espiritualidade numa outra categoria, ou a reduzimos materialisticamente a neurónios e mitos, iniciamos o processo de desumanização da Humanidade. A paz é buscada pela força, a riqueza é armazenada por uns poucos, as estruturas políticas são sequestradas e a religião torna-se meramente mais uma identidade pessoal ou uma agressiva ideologia.
Ainda que não se tenha expressado na perfeição, a pessoa jovem que escreveu a carta compreendeu bem que não estamos apenas a enfrentar uma crise humana de sofrimento, que exige compaixão e acção, mas também uma oportunidade para se viver melhor. As oportunidades podem ser mais desafiadoras do que os fracassos. John Main perguntou-me uma vez quando eu estava no início deste caminho, se eu estava preparado para tudo o que ele iria trazer. Julguei que se referia àquilo a que eu iria renunciar. Mas ele corrigiu-me: “Eu refiro-me à alegria”. Etty Hillesum escreveu, enquanto ajudava os judeus que estavam a ser arrebanhados pelos nazis e embarcados para Auschwitz: “Hoje eu sinto um desespero total. Vou ter que lidar com isto”.
Estamos agora nos dias do equinócio da Primavera, a mais poderosa força de ressurreição na Natureza. É o tempo exacto para lidarmos com a alegria.
Reflexões para a Quaresma 2020 - LAURENCE FREEMAN OSB
Texto original , em inglês: aqui
https://laurencefreeman.me/category/lent-reflections-2020/
Comunidade Mundial para a Meditação Cristã - Portugal
http://www.meditacaocrista.com/
https://www.facebook.com/meditacaocristaportugal
A nossa crise do coronavírus vai durar para além da Quaresma. Mas ela acrescenta uma dimensão pessoal e urgente aos principais temas deste tempo espiritual. Olhámos para eles depois do começo da Quaresma mas talvez agora, eles pareçam mais existenciais e menos meramente espirituais. Ou, dizendo de outro modo, nós estamos a descobrir que o espiritual não é tão abstracto como frequentemente assumimos e que a vida, ela mesma, é uma jornada espiritual que reune todos os aspetos e tipos de experiência humana. Quando nos esquecemos disso, esquecemos um elemento central da nossa humanidade. Arriscamo-nos a nos tornarmos não só espiritualmente subnutridos, mas menos que humanos.
Fiquei chocado recentemente ao receber uma carta dirigida ao Vírus por um(a) jovem de 20 anos. Não a vou citar porque poderia ser perturbador para aqueles que perderam amigos por causa do vírus ou estão seriamente preocupados pelos seus familiares ou por eles mesmos. Era uma carta de agradecimento, escrita de uma forma inteligente e provocadora mas, como podemos esperar de uma pessoa jovem e intensa, faltando-lhe ainda assim uma plena empatia pelos que estão a sofrer. A carta dolorosamente via a crise como um chamamento para um despertar, e uma acusação formal a um estilo de vida insustentável.
Como disse há dias, este não é um tempo para meramente culpar e apontar o dedo, nem mesmo a nós próprios. Mas existe um ensinamento escondido nesta crise e, se o pudermos achar, reconheceremos a oportunidade de mudança que ela oferece. O sofrimento terrível e a taxa de mortalidade no final não serão justificados, mas serão parte desse significado difícil de engolir. Para qualquer pessoa viva hoje, seja qual for a geração a que pertença, infectado ou não, o mundo jamais será o mesmo. A família humana será mais fraca e a recuperação será difícil. Em tempos como estes, as forças obscuras da política e das finanças podem procurar tirar vantagem e nunca será mais importante do que agora ter uma massa crítica de pessoas nas quais a mente contemplativa já despertou. Não heróis nem santos mas seres humanos que recuperaram a dimensão espiritual da realidade, tantas vezes perdida, ridicularizada, negligenciada, rejeitada ou banalizada na nossa cultura de hoje.
Quando colocamos a espiritualidade numa outra categoria, ou a reduzimos materialisticamente a neurónios e mitos, iniciamos o processo de desumanização da Humanidade. A paz é buscada pela força, a riqueza é armazenada por uns poucos, as estruturas políticas são sequestradas e a religião torna-se meramente mais uma identidade pessoal ou uma agressiva ideologia.
Ainda que não se tenha expressado na perfeição, a pessoa jovem que escreveu a carta compreendeu bem que não estamos apenas a enfrentar uma crise humana de sofrimento, que exige compaixão e acção, mas também uma oportunidade para se viver melhor. As oportunidades podem ser mais desafiadoras do que os fracassos. John Main perguntou-me uma vez quando eu estava no início deste caminho, se eu estava preparado para tudo o que ele iria trazer. Julguei que se referia àquilo a que eu iria renunciar. Mas ele corrigiu-me: “Eu refiro-me à alegria”. Etty Hillesum escreveu, enquanto ajudava os judeus que estavam a ser arrebanhados pelos nazis e embarcados para Auschwitz: “Hoje eu sinto um desespero total. Vou ter que lidar com isto”.
Estamos agora nos dias do equinócio da Primavera, a mais poderosa força de ressurreição na Natureza. É o tempo exacto para lidarmos com a alegria.
Reflexões para a Quaresma 2020 - LAURENCE FREEMAN OSB
Texto original , em inglês: aqui
https://laurencefreeman.me/category/lent-reflections-2020/
Comunidade Mundial para a Meditação Cristã - Portugal
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