Sábado Santo
A família ou os entes queridos esperam à cabeceira de quem está em suporte de vida ou – como acontece na crise do corona – não são autorizados a estar a seu lado, mas esperam por notícias à distância – enquanto há respiração há esperança. Por muito próximo que possa estar o inevitável, é uma outra era, um outro mundo distante. Mas quando chega, e o último suspiro é esboçado, quando já não há próxima inspiração, entramos no summum silentium da morte. O grande silêncio.
Nos mosteiros esta expressão refere-se ao silêncio que é suposto os monges observarem estritamente depois da oração da noite. Porém, não é desconhecido o facto de alguns monges entrarem no Zoom ou num “chat”, conversando com alguém da comunidade depois do grande silêncio. Com a morte, todavia, não há escolha, o silêncio tem mesmo se ser observado. Não podemos fazer batota com a morte. E é chocante o quão impotentes somos. Como crianças que pensam que podem obter o que querem pela insistência, pela sedução, pelo choro, pela ameaça, nós finalmente desistimos e admitimos que estamos derrotados. O que se foi se foi.
Por muito que repitamos conversas com os mortos jamais votaremos a ouvi-los ou a vê-los como víamos. Fotos, velhas cartas, objetos pessoais que estimamos, são todos uma magra consolação e passado algum tempo tornam-se impedimentos a um novo relacionamento que se está formando no túmulo e que lentamente evolui para se tornar um útero.
O inflexível e intransigente silêncio da não-comunicação, o fracasso em estabelecer contato, em saber o que a pessoa morta poderia estar a ver ou sentir – se é que alguma coisa. O silêncio de nos questionarmos se elas se importam – se estão em algum lugar ou em algum tipo de existência na qual poderiam se importar com aqueles que delas sentem falta. Por fim o processo de luto permite ao desolado aceitar o óbvio e o inevitável. Embora com outro peso para carregar no seu pesado coração, seguem em frente. Ao morrermos na morte o summum silentium mostra sinais de vida. Brotos verdes rompem do solo morto.
Isto não significa que as mensagens dos mortos estão a circular numa movimentada rede mas que o silêncio se torna mais profundo. Nos tornamos melhor habilitados para escutar o silêncio sem o povoar com os nossos desejos e medos e imaginação. Torna-se uma simples presença. Simples mas mais intensamente presente do que qualquer coisa que antes pensámos que era real.
Nas entrelinhas desta pandemia e da disrupção dolorosa, mas não sem significado, que ela está a causar, deveríamos estar habilitados para escutar este grande silêncio. Se não tivermos uma ou se caiu em desuso, esta é a altura para começar ou para re-usar uma prática espiritual. É tempo de ver o quão necessário é para a sobrevivência, o silêncio das coisas. O silêncio que dá poder à vida por meio da morte.
Aqui em Bonnevaux tenho notado nos meus passeios o quanto os pássaros e outros animais parecem mais presentes e amistosos. Imagino que isto seja uma projeção minha. Fui eu quem mudou, não eles. Mas quem sabe? Talvez seja tudo, no fim de contas, uma questão de relacionamento, não apenas de observação ou de ser-se observado. É altura de começar a Quaresma de novo.
Reflexões para a Quaresma 2020 - LAURENCE FREEMAN OSB
Texto original , em inglês: aqui
https://laurencefreeman.me/category/lent-reflections-2020/
Comunidade Mundial para a Meditação Cristã - Portugal
http://www.meditacaocrista.com/
https://www.facebook.com/meditacaocristaportugal
A família ou os entes queridos esperam à cabeceira de quem está em suporte de vida ou – como acontece na crise do corona – não são autorizados a estar a seu lado, mas esperam por notícias à distância – enquanto há respiração há esperança. Por muito próximo que possa estar o inevitável, é uma outra era, um outro mundo distante. Mas quando chega, e o último suspiro é esboçado, quando já não há próxima inspiração, entramos no summum silentium da morte. O grande silêncio.
Nos mosteiros esta expressão refere-se ao silêncio que é suposto os monges observarem estritamente depois da oração da noite. Porém, não é desconhecido o facto de alguns monges entrarem no Zoom ou num “chat”, conversando com alguém da comunidade depois do grande silêncio. Com a morte, todavia, não há escolha, o silêncio tem mesmo se ser observado. Não podemos fazer batota com a morte. E é chocante o quão impotentes somos. Como crianças que pensam que podem obter o que querem pela insistência, pela sedução, pelo choro, pela ameaça, nós finalmente desistimos e admitimos que estamos derrotados. O que se foi se foi.
Por muito que repitamos conversas com os mortos jamais votaremos a ouvi-los ou a vê-los como víamos. Fotos, velhas cartas, objetos pessoais que estimamos, são todos uma magra consolação e passado algum tempo tornam-se impedimentos a um novo relacionamento que se está formando no túmulo e que lentamente evolui para se tornar um útero.
O inflexível e intransigente silêncio da não-comunicação, o fracasso em estabelecer contato, em saber o que a pessoa morta poderia estar a ver ou sentir – se é que alguma coisa. O silêncio de nos questionarmos se elas se importam – se estão em algum lugar ou em algum tipo de existência na qual poderiam se importar com aqueles que delas sentem falta. Por fim o processo de luto permite ao desolado aceitar o óbvio e o inevitável. Embora com outro peso para carregar no seu pesado coração, seguem em frente. Ao morrermos na morte o summum silentium mostra sinais de vida. Brotos verdes rompem do solo morto.
Isto não significa que as mensagens dos mortos estão a circular numa movimentada rede mas que o silêncio se torna mais profundo. Nos tornamos melhor habilitados para escutar o silêncio sem o povoar com os nossos desejos e medos e imaginação. Torna-se uma simples presença. Simples mas mais intensamente presente do que qualquer coisa que antes pensámos que era real.
Nas entrelinhas desta pandemia e da disrupção dolorosa, mas não sem significado, que ela está a causar, deveríamos estar habilitados para escutar este grande silêncio. Se não tivermos uma ou se caiu em desuso, esta é a altura para começar ou para re-usar uma prática espiritual. É tempo de ver o quão necessário é para a sobrevivência, o silêncio das coisas. O silêncio que dá poder à vida por meio da morte.
Aqui em Bonnevaux tenho notado nos meus passeios o quanto os pássaros e outros animais parecem mais presentes e amistosos. Imagino que isto seja uma projeção minha. Fui eu quem mudou, não eles. Mas quem sabe? Talvez seja tudo, no fim de contas, uma questão de relacionamento, não apenas de observação ou de ser-se observado. É altura de começar a Quaresma de novo.
Reflexões para a Quaresma 2020 - LAURENCE FREEMAN OSB
Texto original , em inglês: aqui
https://laurencefreeman.me/category/lent-reflections-2020/
Comunidade Mundial para a Meditação Cristã - Portugal
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