Sexta-feira da Primeira Semana da Quaresma
Os adultos sobreviventes de abuso infantil referem com frequência um mecanismo de enfrentamento que desenvolveram quando um novo abuso estava prestes a acontecer. Ao ouvirem os passos a aproximarem-se no corredor e a porta do quarto abrir-se, eles geriam o terror, o nojo e a vergonha, que em breve suportariam, separando-se do seu corpo. Imaginar-se a flutuar num canto do tecto, olhando para baixo para o que estava a acontecer a alguém que não era exactamente eles, era o único meio de escapar.
Funcionou na época, mas a solução evoluiu para o problema surgido mais tarde na vida, quando perceberam que, agora, nunca se sentiam a eles próprios como reais e nunca se conseguiam integrar com a pessoa com quem estavam. Medo, distância e um sentimento irracional mas inabalável de auto-alienação acompanhava-os sempre e causavam muitos estragos em todos os aspectos das suas vidas.
A forma cruel como o abuso infantil influencia e distorce a vida futura de uma criança é agora amplamente reconhecida, depois de milénios de se pensar que as crianças simplesmente o superariam à medida que fossem crescendo. A percepção distorcida de si mesmo como a vítima culpada nas situações mais comuns da vida, rouba as comuns alegrias e maravilhas da aventura da vida em cada um dos seus capítulos.
Contudo, no coração desta aventura está o processo de cura. No seu seio, a graça inesperadamente chega, muitas vezes quando a situação está prestes a tornar-se intolerável. A graça pode se manifestar numa conversa ouvida por acaso, numa palavra caída no silêncio, num olhar, num livro, numa amendoeira em flor iluminada pela luz do sol num dia frio de Primavera. Ou numa pessoa. A graça não se serve da força, mas é poderosa. Não destrói ainda mais a nossa já limitada liberdade, mas é, gradualmente, irresistível. Quando a rejeitamos porque ela torna exposta uma dor que preferíamos reprimir ou memórias que não podemos chamar plenamente à consciência, a graça não se ofende e não nos rejeita. Ela expressa um amor muito mais profundo do que isso.
No deserto do nosso coração, “onde começa a fonte da cura”, a graça brota, penetrando através das camadas mais densas da dor e do medo da realidade. Seja o que for que nos possa conduzir a esse deserto, onde ocorrem encontros verdadeiros, é sagrado. Para a pessoa que medita, esta simples entrada no deserto é uma repetida, mas sempre perturbadora descoberta. Ela dá início a um longo processo de deixar ir e uma transformadora re-avaliação do mapa completo que fizemos da nossa vida.
É claro que, os frutos da meditação conduzem-nos então, às outras fontes de graça e cura de que precisamos: o lugar seguro onde podemos partilhar a vergonha, o sentido de que as pessoas, apesar das suas próprias fraquezas, podem canalizar uma intimidade que parecia completamente perdida para nós, que o salvador sobre o qual se fantasia não existe. Mas o salvador que nos conhece e conheceu a nossa própria dor, está a empurrar-nos suavemente para uma vida nova.
Reflexões para a Quaresma 2020 - LAURENCE FREEMAN OSB
Texto original , em inglês: aqui
https://laurencefreeman.me/category/lent-reflections-2020/
Comunidade Mundial para a Meditação Cristã - Portugal
http://www.meditacaocrista.com/
https://www.facebook.com/meditacaocristaportugal
Os adultos sobreviventes de abuso infantil referem com frequência um mecanismo de enfrentamento que desenvolveram quando um novo abuso estava prestes a acontecer. Ao ouvirem os passos a aproximarem-se no corredor e a porta do quarto abrir-se, eles geriam o terror, o nojo e a vergonha, que em breve suportariam, separando-se do seu corpo. Imaginar-se a flutuar num canto do tecto, olhando para baixo para o que estava a acontecer a alguém que não era exactamente eles, era o único meio de escapar.
Funcionou na época, mas a solução evoluiu para o problema surgido mais tarde na vida, quando perceberam que, agora, nunca se sentiam a eles próprios como reais e nunca se conseguiam integrar com a pessoa com quem estavam. Medo, distância e um sentimento irracional mas inabalável de auto-alienação acompanhava-os sempre e causavam muitos estragos em todos os aspectos das suas vidas.
A forma cruel como o abuso infantil influencia e distorce a vida futura de uma criança é agora amplamente reconhecida, depois de milénios de se pensar que as crianças simplesmente o superariam à medida que fossem crescendo. A percepção distorcida de si mesmo como a vítima culpada nas situações mais comuns da vida, rouba as comuns alegrias e maravilhas da aventura da vida em cada um dos seus capítulos.
Contudo, no coração desta aventura está o processo de cura. No seu seio, a graça inesperadamente chega, muitas vezes quando a situação está prestes a tornar-se intolerável. A graça pode se manifestar numa conversa ouvida por acaso, numa palavra caída no silêncio, num olhar, num livro, numa amendoeira em flor iluminada pela luz do sol num dia frio de Primavera. Ou numa pessoa. A graça não se serve da força, mas é poderosa. Não destrói ainda mais a nossa já limitada liberdade, mas é, gradualmente, irresistível. Quando a rejeitamos porque ela torna exposta uma dor que preferíamos reprimir ou memórias que não podemos chamar plenamente à consciência, a graça não se ofende e não nos rejeita. Ela expressa um amor muito mais profundo do que isso.
No deserto do nosso coração, “onde começa a fonte da cura”, a graça brota, penetrando através das camadas mais densas da dor e do medo da realidade. Seja o que for que nos possa conduzir a esse deserto, onde ocorrem encontros verdadeiros, é sagrado. Para a pessoa que medita, esta simples entrada no deserto é uma repetida, mas sempre perturbadora descoberta. Ela dá início a um longo processo de deixar ir e uma transformadora re-avaliação do mapa completo que fizemos da nossa vida.
É claro que, os frutos da meditação conduzem-nos então, às outras fontes de graça e cura de que precisamos: o lugar seguro onde podemos partilhar a vergonha, o sentido de que as pessoas, apesar das suas próprias fraquezas, podem canalizar uma intimidade que parecia completamente perdida para nós, que o salvador sobre o qual se fantasia não existe. Mas o salvador que nos conhece e conheceu a nossa própria dor, está a empurrar-nos suavemente para uma vida nova.
Reflexões para a Quaresma 2020 - LAURENCE FREEMAN OSB
Texto original , em inglês: aqui
https://laurencefreeman.me/category/lent-reflections-2020/
Comunidade Mundial para a Meditação Cristã - Portugal
http://www.meditacaocrista.com/
https://www.facebook.com/meditacaocristaportugal