Sexta-feira Santa
Tem importância a forma como morremos. E como morremos depende de como abordamos o morrer. Como a abordamos inevitavelmente depende de como tivermos vivido. Como vivemos depende do quanto aprendemos o amor.
Em muitas tradições de sabedoria a morte está associada com uma crise – a palavra “krisis” significa “julgamento”. Um acerto de contas tem de ser feito e, tal como para fazer a declaração do IRS, ninguém tem grande vontade de passar por ele, mas não é tão mau como parece depois de nos dispormos mentalmente para isso. Quanto mais complicados forem os nossos assuntos, mais tempo vai tomar. Mas contrariamente à declaração do IRS não podemos pagar a alguém para o fazer por nós. Morrendo, todos nós nos tornamos eremitas e, se não tivermos entendido a solitude antes, iremos aprendê-la nesta última crise da vida.
Os Egípcios viam o juízo final como o pesar do coração humano, pondo do outro lado da balança a plumagem da verdade. Se o coração do falecido fosse demasiado pesado, demasiado impuro, a deusa da verdade devorá-lo-ia e a desafortunada alma seria detida na sua viagem para a imortalidade, presa num certo limbo intermédio ou mundo inferior.
Assim, com medo da desconhecida vida depois da vida, as pessoas costumavam rezar por uma morte santa. Isto significava a pessoa abrir mão da sua vida, dos seus apegos e dos seus entes queridos, pacificamente. Mesmo quando a dor era aguda, a pessoa podia alcançar uma digna equanimidade; nada de andar por aí a arrastar-se dramaticamente, queixando-se da “noite escura”, para dentro da qual o poeta romântico Dylan Thomas disse que não devíamos ir mansamente. Em vez disso, ele disse que devíamos “enraivecer-nos contra o esmorecimento da luz”. Mas perante o testemunho de uma morte santa isto soa embaraçosamente adolescente.
E que dizer da Sexta-feira Santa no meio desta pandemia em que tantos já morreram e que irá levar muitos outros, antes de terminar o seu curso? Se tivermos vindo a seguir a Quaresma – e que Quaresma foi esta em 2020 – deveremos estar um pouco mais preparados para olhar a morte nos olhos e encarar o nosso medo mais profundo. Quando os medos são encarados, eles desmoronam. É só quando fugimos deles que se tornam monstruosos e fazem naufragar a nossa vida e a nossa capacidade de amar.
Até a morte dos injustamente acusados, das crianças, das vítimas de genocídio ou da desigualdade social (como vemos nos números das vítimas da Covid-19), até as mais perturbadoras mortes nos ensinam coisas sobre a vida. Yama, o mítico deus da morte no Katha Upanishad, é um professor de humanidade. O mesmo acontece com o plenamente humano e histórico Jesus, não somente naquilo que Ele pregava, mas na forma como viveu e morreu dentro do Seu ensinamento, de facto tornando-se naquilo que ensinou. Se morrermos do mesmo modo que vivemos, o nosso morrer é um dom, um autêntico ensinamento em si mesmo, para aquelas de quem nos despedimos. Mesmo no nosso pesar conseguimos sentir a graça de uma morte santa e a sua alegre, tipo-nascimento, expansão e libertação. Todas as mortes, Jesus mostra-nos, podem ser redentoras.
Ele não se enraiveceu contra o esmorecimento da luz. Ele viu a luz crescente. Ditas a partir deste incomunicável despertar, as Suas últimas palavras iluminam-nos: “Tenho sede. Hoje tu estarás comigo no paraíso. Pai, perdoa-lhes pois não sabem o que fazem. Pai, nas Tuas mãos, entrego o Meu Espírito. Tudo está consumado.”
Reflexões para a Quaresma 2020 - LAURENCE FREEMAN OSB
Texto original , em inglês: aqui
https://laurencefreeman.me/category/lent-reflections-2020/
Comunidade Mundial para a Meditação Cristã - Portugal
http://www.meditacaocrista.com/
https://www.facebook.com/meditacaocristaportugal
Tem importância a forma como morremos. E como morremos depende de como abordamos o morrer. Como a abordamos inevitavelmente depende de como tivermos vivido. Como vivemos depende do quanto aprendemos o amor.
Em muitas tradições de sabedoria a morte está associada com uma crise – a palavra “krisis” significa “julgamento”. Um acerto de contas tem de ser feito e, tal como para fazer a declaração do IRS, ninguém tem grande vontade de passar por ele, mas não é tão mau como parece depois de nos dispormos mentalmente para isso. Quanto mais complicados forem os nossos assuntos, mais tempo vai tomar. Mas contrariamente à declaração do IRS não podemos pagar a alguém para o fazer por nós. Morrendo, todos nós nos tornamos eremitas e, se não tivermos entendido a solitude antes, iremos aprendê-la nesta última crise da vida.
Os Egípcios viam o juízo final como o pesar do coração humano, pondo do outro lado da balança a plumagem da verdade. Se o coração do falecido fosse demasiado pesado, demasiado impuro, a deusa da verdade devorá-lo-ia e a desafortunada alma seria detida na sua viagem para a imortalidade, presa num certo limbo intermédio ou mundo inferior.
Assim, com medo da desconhecida vida depois da vida, as pessoas costumavam rezar por uma morte santa. Isto significava a pessoa abrir mão da sua vida, dos seus apegos e dos seus entes queridos, pacificamente. Mesmo quando a dor era aguda, a pessoa podia alcançar uma digna equanimidade; nada de andar por aí a arrastar-se dramaticamente, queixando-se da “noite escura”, para dentro da qual o poeta romântico Dylan Thomas disse que não devíamos ir mansamente. Em vez disso, ele disse que devíamos “enraivecer-nos contra o esmorecimento da luz”. Mas perante o testemunho de uma morte santa isto soa embaraçosamente adolescente.
E que dizer da Sexta-feira Santa no meio desta pandemia em que tantos já morreram e que irá levar muitos outros, antes de terminar o seu curso? Se tivermos vindo a seguir a Quaresma – e que Quaresma foi esta em 2020 – deveremos estar um pouco mais preparados para olhar a morte nos olhos e encarar o nosso medo mais profundo. Quando os medos são encarados, eles desmoronam. É só quando fugimos deles que se tornam monstruosos e fazem naufragar a nossa vida e a nossa capacidade de amar.
Até a morte dos injustamente acusados, das crianças, das vítimas de genocídio ou da desigualdade social (como vemos nos números das vítimas da Covid-19), até as mais perturbadoras mortes nos ensinam coisas sobre a vida. Yama, o mítico deus da morte no Katha Upanishad, é um professor de humanidade. O mesmo acontece com o plenamente humano e histórico Jesus, não somente naquilo que Ele pregava, mas na forma como viveu e morreu dentro do Seu ensinamento, de facto tornando-se naquilo que ensinou. Se morrermos do mesmo modo que vivemos, o nosso morrer é um dom, um autêntico ensinamento em si mesmo, para aquelas de quem nos despedimos. Mesmo no nosso pesar conseguimos sentir a graça de uma morte santa e a sua alegre, tipo-nascimento, expansão e libertação. Todas as mortes, Jesus mostra-nos, podem ser redentoras.
Ele não se enraiveceu contra o esmorecimento da luz. Ele viu a luz crescente. Ditas a partir deste incomunicável despertar, as Suas últimas palavras iluminam-nos: “Tenho sede. Hoje tu estarás comigo no paraíso. Pai, perdoa-lhes pois não sabem o que fazem. Pai, nas Tuas mãos, entrego o Meu Espírito. Tudo está consumado.”
Reflexões para a Quaresma 2020 - LAURENCE FREEMAN OSB
Texto original , em inglês: aqui
https://laurencefreeman.me/category/lent-reflections-2020/
Comunidade Mundial para a Meditação Cristã - Portugal
http://www.meditacaocrista.com/
https://www.facebook.com/meditacaocristaportugal