Terça-feira da Terceira Semana
Existe, geralmente, uma falsa perspectiva da Quaresma e da ascese espiritual (exercícios) que se associa a uma ideia de se ser ou parecer solene a um ponto muito infeliz. Jesus fala nisto dizendo que, quando praticares uma disciplina de autocontenção, não a publicites e não te faças de compungido ou piedoso. Sai do teu caminho e mostra-te descontraído e alegre.
Há uma dinâmica de culpa enraizada na nossa psique. E outro factor perturbador no ego é o sentimento mágico de que cada momento feliz usa um crédito limitado, como num plano telefónico, e que isso tem de ser compensado com uma acção custosa ou difícil. Temos de pagar pela felicidade. A felicidade é um produto, não o nosso estado natural. Não temos direito a ser felizes enquanto o mundo está a ser desmantelado por um vírus global, houver um milhão de refugiados deslocados na Síria ou um amigo estiver em sofrimento.
O que é a felicidade? Para as pessoas religiosas, isto desliza para uma ideia de um Deus que só quer que sejamos felizes nos seus termos, quando o veneramos de um modo que Ele aprova. E este Deus, numa forma complexa da ideia de karma – temos o que merecemos – torna-se então um deus mesquinho que recompensa e castiga. A formação religiosa e as ideias culturais sobre Deus reforçam muitas vezes essas ideias, mas elas são, em primeiro lugar, formadas na infância ao observarmos como os adultos nos tratam. Lindo menino, toma lá um presente. Menino feio, vai para a cama.
A meditação tem um poder surpreendente de desmantelar todos os complexos de ideias autorreforçadoras e a corrente de pensamentos compulsivos. Isto funciona diretamente em todos os nossos pensamentos e imagens sobre Deus – que não são apenas aspectos intelectuais, mas fortemente emocionais. Se acreditarmos que Deus nos castiga por causa das nossas faltas, ficamos emocionalmente afetados em tudo o que fizermos e em todos os nossos relacionamentos. Então, à medida que as ideias sobre Deus mudam, assim também as nossas perspectivas fundamentais da realidade e as nossas relações com os outros.
As pessoas religiosas ficam muitas vezes desconfortáveis na primeira fase deste processo. Sentem que Deus está a desaparecer, que a meditação não é bem oração ou que elas podem acabar por se tornar ateias. Um dia, um homem contou-me que meditava fielmente, mas não estava convencido que fosse mesmo uma forma de oração que a Igreja ou Deus aprovassem. Por isso, ele iniciava cada meditação com uma prece: “Querido Deus, agora vou meditar, mas acredita que eu não sou realmente um budista”.
Quando as antigas ideias sobre Deus se desvanecem, nada de sólido aparece imediatamente para tomar o seu lugar. Tempo e fé, no entanto, ajudam-nos a compreender que o nada é a pobreza em espírito, que o vazio é o espaço da plenitude e que a perda é a primeira parte de um ciclo que conduz a um surpreendente novo tipo de descoberta. Encontramos o que perdemos, mas está diferente porque foi perdido. Ou por causa da distância a que ficou quando estava perdido, ou porque fomos nós que mudámos. Às vezes, temos mesmo de perder as nossas crenças sobre Deus, até mesmo parar de acreditar e esperar. Até acreditarmos de novo, de um modo diferente. A fé é aprofundada nos túneis do tempo. E o tempo é transcendido pela fé.
Reflexões para a Quaresma 2020 - LAURENCE FREEMAN OSB
Texto original , em inglês: aqui
https://laurencefreeman.me/category/lent-reflections-2020/
Comunidade Mundial para a Meditação Cristã - Portugal
http://www.meditacaocrista.com/
https://www.facebook.com/meditacaocristaportugal
Existe, geralmente, uma falsa perspectiva da Quaresma e da ascese espiritual (exercícios) que se associa a uma ideia de se ser ou parecer solene a um ponto muito infeliz. Jesus fala nisto dizendo que, quando praticares uma disciplina de autocontenção, não a publicites e não te faças de compungido ou piedoso. Sai do teu caminho e mostra-te descontraído e alegre.
Há uma dinâmica de culpa enraizada na nossa psique. E outro factor perturbador no ego é o sentimento mágico de que cada momento feliz usa um crédito limitado, como num plano telefónico, e que isso tem de ser compensado com uma acção custosa ou difícil. Temos de pagar pela felicidade. A felicidade é um produto, não o nosso estado natural. Não temos direito a ser felizes enquanto o mundo está a ser desmantelado por um vírus global, houver um milhão de refugiados deslocados na Síria ou um amigo estiver em sofrimento.
O que é a felicidade? Para as pessoas religiosas, isto desliza para uma ideia de um Deus que só quer que sejamos felizes nos seus termos, quando o veneramos de um modo que Ele aprova. E este Deus, numa forma complexa da ideia de karma – temos o que merecemos – torna-se então um deus mesquinho que recompensa e castiga. A formação religiosa e as ideias culturais sobre Deus reforçam muitas vezes essas ideias, mas elas são, em primeiro lugar, formadas na infância ao observarmos como os adultos nos tratam. Lindo menino, toma lá um presente. Menino feio, vai para a cama.
A meditação tem um poder surpreendente de desmantelar todos os complexos de ideias autorreforçadoras e a corrente de pensamentos compulsivos. Isto funciona diretamente em todos os nossos pensamentos e imagens sobre Deus – que não são apenas aspectos intelectuais, mas fortemente emocionais. Se acreditarmos que Deus nos castiga por causa das nossas faltas, ficamos emocionalmente afetados em tudo o que fizermos e em todos os nossos relacionamentos. Então, à medida que as ideias sobre Deus mudam, assim também as nossas perspectivas fundamentais da realidade e as nossas relações com os outros.
As pessoas religiosas ficam muitas vezes desconfortáveis na primeira fase deste processo. Sentem que Deus está a desaparecer, que a meditação não é bem oração ou que elas podem acabar por se tornar ateias. Um dia, um homem contou-me que meditava fielmente, mas não estava convencido que fosse mesmo uma forma de oração que a Igreja ou Deus aprovassem. Por isso, ele iniciava cada meditação com uma prece: “Querido Deus, agora vou meditar, mas acredita que eu não sou realmente um budista”.
Quando as antigas ideias sobre Deus se desvanecem, nada de sólido aparece imediatamente para tomar o seu lugar. Tempo e fé, no entanto, ajudam-nos a compreender que o nada é a pobreza em espírito, que o vazio é o espaço da plenitude e que a perda é a primeira parte de um ciclo que conduz a um surpreendente novo tipo de descoberta. Encontramos o que perdemos, mas está diferente porque foi perdido. Ou por causa da distância a que ficou quando estava perdido, ou porque fomos nós que mudámos. Às vezes, temos mesmo de perder as nossas crenças sobre Deus, até mesmo parar de acreditar e esperar. Até acreditarmos de novo, de um modo diferente. A fé é aprofundada nos túneis do tempo. E o tempo é transcendido pela fé.
Reflexões para a Quaresma 2020 - LAURENCE FREEMAN OSB
Texto original , em inglês: aqui
https://laurencefreeman.me/category/lent-reflections-2020/
Comunidade Mundial para a Meditação Cristã - Portugal
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