
Quaresma 2021 - Segunda-feira da Semana Santa
(Evangelho Jo 12:1-11. Maria ungiu os pés de Jesus, secando-os com os seus cabelos)
Às vezes, não sou muito bom observador. Só ontem é que apreciei plenamente uma coisa que ando a fazer há longo tempo, subindo um estreito carreiro desde a Abadia até ao Celeiro, aqui em Bonnevaux. O carreiro foi-se formando gradualmente, impercetivelmente, ao longo de muito tempo, atravessando todas as condições climáticas, sob a pressão de muitos pares de pés em fila indiana, várias vezes ao dia.
Estava a pensar como descrever o que significa “tradição” numa reunião para jovens, a primeira de uma série mensal. É claro que poderia dizer que “tradição” significa “fazer a ponte + dar”, a entrega em mãos, de uma intuição de sabedoria ou de um simples padrão de comportamento. Mas isso parecia-me um pouco frio porque não descreve o sentimento de descobrir que já pertencemos (em Inglês, belong) a uma tradição: nós “existimos” (be) nesta transmissão contínua e tocamos o nosso profundo “anseio” (long) nela. A ideia de que meramente escolhemos a nossa tradição a partir daquilo que há disponível como oferta, é muito menos interessante e profunda. É um enorme alívio saber que já pertencemos (“existimos-ansiamos”).
Ver o pequeno carreiro que sobe a colina, rasgado entre a erva, que todos fizemos, mês após mês, inconsciente e fielmente, foi também um alívio. Espero que nunca formalizemos este carreirinho e o pavimentemos com gravilha, embora ele possa ficar escorregadio com tempo húmido e, muitas vezes, trazemos bocados de terra para dentro de casa. Assim evolui a tradição.
Enquanto falava com os jovens na nossa reunião intercontinental, pareceu-me que a pertença era uma necessidade essencial neste nosso tempo fragmentado; dar por nós em carreiros que herdamos, mas que também ajudamos a manter e a dar forma. Um deles é o caminho comum da prática espiritual, do profundo autodesenvolvimento. Outro é o caminho da compreensão e do envolvimento com as culturas uns dos outros. Outro ainda é a proteção da nossa casa comum e termos o dever de cuidar, expressando-o compassivamente, àqueles que a Bíblia designa como “anawim”, os pobres, oprimidos e marginalizados. Porém, também se refere, à pobreza em espírito que abraçamos na meditação. Os mais importantes termos no pensamento religioso, cada um deles, tem dois lados. Pensemos em “jihad”, que pode ser sequestrado para se referir apenas ao conflito externo, mas cujo significado mais profundo é interior, o sentido de autodomínio.
Se um carreiro é criado por se caminhar sobre ele continuamente, ele tem dois lados formados por pares de pés que se movem num caminhar fácil e natural. Uma tradição também é formada por meio do equilíbrio entre os significados exterior e interior. Então, o carreirinho estreito transforma-se numa grande tradição. Torna-se nosso quando vemos que lhe pertencemos e ajudamos a fazê-lo.
Então, aquilo que descobrimos passando diariamente para cima e para baixo no carreiro nunca deixa de nos deleitar e enriquecer. A cantata de Bach que oiço, quando tenho tempo, de manhã. Ou a história do evangelho de hoje. O amor de Maria por Jesus é silenciosamente derramado quando ela Lhe unge os pés, com um perfume precioso. O nardo alivia o stress e a ansiedade. Enquanto ela aplica o unguento nos seus pés, as suas lágrimas escorrem e ela seca-as com os cabelos. É a mais íntima descrição física de Jesus que viajou ao longo da tradição, assim como o Caminho em que Ele se tornou e pelo qual ainda caminhamos.
“E a casa encheu-se com a fragância do perfume” (Jo 12:3). Não apenas a casa, mas o tempo.
Laurence
Reflexões para a Quaresma 2021 - LAURENCE FREEMAN OSB
Comunidade Mundial para a Meditação Cristã - Portugal
Site: http://www.meditacaocrista.com/
Facebook: https://www.facebook.com/meditacaocristaportugal
YouTube: https://www.youtube.com/user/meditacaocristaTv
(Evangelho Jo 12:1-11. Maria ungiu os pés de Jesus, secando-os com os seus cabelos)
Às vezes, não sou muito bom observador. Só ontem é que apreciei plenamente uma coisa que ando a fazer há longo tempo, subindo um estreito carreiro desde a Abadia até ao Celeiro, aqui em Bonnevaux. O carreiro foi-se formando gradualmente, impercetivelmente, ao longo de muito tempo, atravessando todas as condições climáticas, sob a pressão de muitos pares de pés em fila indiana, várias vezes ao dia.
Estava a pensar como descrever o que significa “tradição” numa reunião para jovens, a primeira de uma série mensal. É claro que poderia dizer que “tradição” significa “fazer a ponte + dar”, a entrega em mãos, de uma intuição de sabedoria ou de um simples padrão de comportamento. Mas isso parecia-me um pouco frio porque não descreve o sentimento de descobrir que já pertencemos (em Inglês, belong) a uma tradição: nós “existimos” (be) nesta transmissão contínua e tocamos o nosso profundo “anseio” (long) nela. A ideia de que meramente escolhemos a nossa tradição a partir daquilo que há disponível como oferta, é muito menos interessante e profunda. É um enorme alívio saber que já pertencemos (“existimos-ansiamos”).
Ver o pequeno carreiro que sobe a colina, rasgado entre a erva, que todos fizemos, mês após mês, inconsciente e fielmente, foi também um alívio. Espero que nunca formalizemos este carreirinho e o pavimentemos com gravilha, embora ele possa ficar escorregadio com tempo húmido e, muitas vezes, trazemos bocados de terra para dentro de casa. Assim evolui a tradição.
Enquanto falava com os jovens na nossa reunião intercontinental, pareceu-me que a pertença era uma necessidade essencial neste nosso tempo fragmentado; dar por nós em carreiros que herdamos, mas que também ajudamos a manter e a dar forma. Um deles é o caminho comum da prática espiritual, do profundo autodesenvolvimento. Outro é o caminho da compreensão e do envolvimento com as culturas uns dos outros. Outro ainda é a proteção da nossa casa comum e termos o dever de cuidar, expressando-o compassivamente, àqueles que a Bíblia designa como “anawim”, os pobres, oprimidos e marginalizados. Porém, também se refere, à pobreza em espírito que abraçamos na meditação. Os mais importantes termos no pensamento religioso, cada um deles, tem dois lados. Pensemos em “jihad”, que pode ser sequestrado para se referir apenas ao conflito externo, mas cujo significado mais profundo é interior, o sentido de autodomínio.
Se um carreiro é criado por se caminhar sobre ele continuamente, ele tem dois lados formados por pares de pés que se movem num caminhar fácil e natural. Uma tradição também é formada por meio do equilíbrio entre os significados exterior e interior. Então, o carreirinho estreito transforma-se numa grande tradição. Torna-se nosso quando vemos que lhe pertencemos e ajudamos a fazê-lo.
Então, aquilo que descobrimos passando diariamente para cima e para baixo no carreiro nunca deixa de nos deleitar e enriquecer. A cantata de Bach que oiço, quando tenho tempo, de manhã. Ou a história do evangelho de hoje. O amor de Maria por Jesus é silenciosamente derramado quando ela Lhe unge os pés, com um perfume precioso. O nardo alivia o stress e a ansiedade. Enquanto ela aplica o unguento nos seus pés, as suas lágrimas escorrem e ela seca-as com os cabelos. É a mais íntima descrição física de Jesus que viajou ao longo da tradição, assim como o Caminho em que Ele se tornou e pelo qual ainda caminhamos.
“E a casa encheu-se com a fragância do perfume” (Jo 12:3). Não apenas a casa, mas o tempo.
Laurence
Reflexões para a Quaresma 2021 - LAURENCE FREEMAN OSB
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