
Sábado da Primeira Semana
O longo e profundo processo do perdão deve ter início assim que o mal for feito. Não é uma questão de vontade, mas sim de estar preparado. John Main disse uma vez que a meta da educação cristã é preparar os jovens para a experiência da traição que encontrarão nas suas vidas.
No primeiro instante em que vemos o dano ser deliberadamente orientado para nós, sentimo-nos chocados e tristes. “Zangados e tristes”, como ficou Caim quando se sentiu mal tratado por Deus. Deus disse-lhe para esperar e processar esses sentimentos. De outro modo, a besta da violência emergiria das sombras e tomaria conta dele. Ficamos zangados, em primeiro lugar, porque qualquer acto de injustiça é um ataque ao equilíbrio delicado do universo. Os efeitos em cascata da nossa justificada indignação estendem-se largamente e por várias gerações. Isto é visceral, antes de racionalizarmos e culparmos. A própria besta é visceral e está profundamente impregnada na nossa psique. Vladimir Putin descreveu-se a si próprio, na infância, como um bandido de rua que aprendeu que, se sentir que vai haver uma luta, garante que o primeiro soco é seu. A nossa tendência em sermos dominados pela besta, assim como uma predisposição para o alcoolismo, reside profundamente na nossa memória celular, desde ainda antes da formação da nossa personalidade.
Podemos estar preparados para ela. Assim como acontece com muitos vírus, ela pode estar adormecida nos assuntos humanos, mas não pode ser erradicada. A nossa indignação visceral contra a violência injustificada permite o início imediato do processo do perdão, mesmo quando resistimos e nos defendemos, como estão fazendo os ucranianos. Ninguém espera que eles digam como os russos são simpáticos. Mas eles, tal como nós, em situações diárias menos extremas, podem aprender a não transformar o inimigo num objeto demonizado. É por isso que é importante para nós ouvir e admirar os muitos exemplos de oposição russa a esta guerra, que têm sido brutalmente castigados e reprimidos. Eles recordam-nos de que, por causa do medo por nós próprios ou por se ter sofrido uma lavagem ao cérebro, qualquer um pode obedecer a ordens desumanas. E horrivelmente, no ódio por nós próprios, por nos sabermos “virados”, podemos começar a gostar da situação. Nenhum de nós pode dizer com segurança que não encontraria um modo de justificar esse mesmo comportamento, se a sua vida ou a dos seus familiares estivesse a ser ameaçada.
Do mesmo modo na vida quotidiana, quando alguém nos atraiçoa ou trai a nossa confiança temos de nos lembrar das coisas boas que fez no passado. Estamos, então, a lidar com um frágil e não confiável ser humano e não com uma figura satânica de um jogo de vídeo qualquer da nossa fantasia, que podemos fazer explodir no ecrã. Muitos dos jovens recrutas russos estremecem no fio da navalha da consciência ao decidirem obedecer e lutar ou serem castigados para exemplo dos outros. As trincheiras da Primeira Guerra Mundial deram muitos exemplos dessas situações. A guerra espalha injustiça como uma pandemia no seu auge. Somos todos poluídos por ela.
Quando o equilíbrio do universo foi perturbado com um acto de injustiça, muitos inocentes, pessoas comuns, são forçadas a fazer coisas contra a sua consciência. A injustiça ofusca a nossa visão moral. Mas o processo do perdão liberta entendimento, sabedoria e compaixão, os quais só por si podem restaurar a claridade da caridade. Não há maior mestre disso que Jesus.
Laurence
Reflexões para a Quaresma 2021 - LAURENCE FREEMAN OSB
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